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Conselho Regional de Medicina

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“BOM DIA A TODOS,

Saúdo aos ilustres senadores e deputados federais presentes neste Plenário, bem como a todos os outros convidados e interessados neste tema, que, nesta segunda-feira, abriram espaço em suas agendas para fazer uma reflexão sobre diferentes aspectos vinculados à Resolução CFM nº 2.378/2024.

Essa norma, atualmente suspensa por decisão liminar do Supremo Tribunal Federal, proíbe o médico de realizar a assistolia fetal em procedimentos de interrupção de gestação decorrente de estupro acima de 22 semanas.

Quero antes de tudo me apresentar. Meu nome é José Hiran da Silva Gallo, sou médico ginecologista e obstetra, com mais de quatro décadas de exercício profissional ativo.

Atualmente, ocupo a Presidência do Conselho Federal de Medicina, órgão que faz a legítima representação dos quase 600 mil médicos brasileiros.

Importante destacar que minha manifestação neste Plenário está isenta de conflitos de interesse de qualquer natureza.

As considerações que serão apresentadas não representam grupos políticos, ideológicos, econômicos, religiosos ou de militâncias específicas.

Minha fala é baseada na vivência de quem, por 40 anos, atendeu milhares de mulheres e seus bebês no Estado de Rondônia, num tempo onde os avanços da ciência e da tecnologia não chegavam ao então território cravado no coração da América do Sul.

Ela também expressa entendimentos legais, técnicos, éticos e bioéticos não apenas do médico José Hiran da Silva Gallo, mas do corpo de 54 conselheiros que compõem o CFM, instância representativa da classe médica.

Além de estar atento às reinvindicações dos médicos, o CFM também tem em seu escopo legal a missão de defender os interesses da população.

Por isso, luta incessantemente por práticas e políticas públicas que assegurem a prevenção e o combate às doenças e a preservação da saúde e da vida, dois bens inalienáveis.

Muitas pessoas ignoram que o Conselho Federal de Medicina é uma autarquia pública de caráter especial, criada pela Lei nº 3.268/1957, promulgada pelo então presidente Juscelino Kubitscheck de Oliveira, um médico mineiro que tanto fez por essa Nação.

Em 68 anos de funcionamento, o CFM tem sido instrumento do Estado para oferecer à população brasileira acesso a serviços e atendimento de qualidade. Vejamos, alguns exemplos:

O CFM foi um aliado histórico no esforço que levou à criação do Sistema Único de Saúde e contribui até hoje, de modo diletante, com o fortalecimento de suas estratégias, como: o Programa Nacional de Imunizações, a Estratégia Saúde da Família, o Programa de Atendimento à População que vive com HIV, e tantos outros.

O CFM, por meio dos CRMs, responde por, em média, mais de 25 mil fiscalizações ao ano em hospitais, prontos-socorros e postos de saúde, dentre outros estabelecimentos de saúde, apontando fragilidades no atendimento e cobrando dos gestores soluções que minimizem os efeitos da crise do SUS.

O CFM tem elaborado resoluções fundamentais para a melhoria do fluxo assistencial, como a Resolução nº 2079/2014, que limita a permanência de pacientes em observação nos prontos-socorros, exigindo de gestores o seu encaminhamento para leitos de internação após um prazo de 24 horas.

Por sua vez, foi o CFM que criou regras éticas essenciais, como: a Resolução nº 2.320/2022, que regulamenta os procedimentos de reprodução assistida, tornando real o sonho de ter uma família para milhares de pessoas; a Resolução nº 2.173/2017, que define os parâmetros de diagnóstico de morte encefálica, que tem ajudado a melhorar os índices de transplantes de órgãos no País; e a Resolução nº 2.314/2022, que permitiu o uso da telemedicina, oferecendo acesso ao atendimento médico à distância no Brasil.

EXCELENTÍSSIMOS SENHORES SENADORES, DEPUTADOS E DEMAIS PRESENTES, faço essa introdução porque, no escopo desse debate e de tantos outros, é preciso ter claro que o CFM é um aliado da população brasileira, sem qualquer intenção de limitar ou excluir direitos. Muito menos de penalizar indivíduos ou segmentos populacionais, já historicamente privados de conquistas e até de sua cidadania.

Aproveito essa oportunidade para esclarecer informações distorcidas que, propositalmente, têm trazido confusão na análise da Resolução CFM nº 2.378/2024, que aborda tema difícil e repleto de nuances.

Reitero que a verdade – somente a verdade – deve pautar tomadas de decisões. Narrativas tendenciosas precisam ser desconsideradas, pois trazem, em seu bojo, interesses outros que não são os da coletividade.

Assim, nos próximos minutos, vamos nos deter sobre QUATRO pontos dentro desse tópico que merecem nossa máxima atenção e reflexão.

O PRIMEIRO PONTO é a narrativa distorcida que coloca o CFM como opositor ao chamado Aborto Legal. Isso não é verdade.

Nunca, em tempo algum, a edição da Resolução CFM nº 2.378/2024 teve como objetivo comprometer a oferta desse serviço em hospitais da rede pública.

Trata-se de programa incorporado pelo Estado brasileiro e que deve ser disponibilizado à população, segundo critérios de acesso definidos em lei.

Cabe ao Ministério da Saúde e aos gestores do Sistema Único de Saúde criarem condições para que esses núcleos funcionem de modo a atender às demandas existentes.

O CFM não tem qualquer ingerência sobre esse processo e ouso dizer que a Resolução CFM nº 2.378/2024 não pode ser utilizada como desculpa por lacunas nesse tipo de atendimento que existem há décadas.

Ora, senhoras e senhores, no Brasil, há, atualmente, 92 serviços que oferecem o aborto legal para a população, distribuídos em 20 estados.

Desse total, apenas 32 são referenciados pelo Ministério da Saúde. Em qualquer um dos dois cenários, a grande maioria desses estabelecimentos está no Sul e Sudeste.

Considerando-se as dimensões continentais do nosso País e o tamanho da população feminina, estamos evidentemente diante de uma estrutura, no mínimo, tímida e que deve operar com limitações.

Me parece excessivo atribuir à norma do CFM, publicada em abril desse ano, a responsabilidade pela falência desses serviços que começaram a funcionar em 1989, quando a Prefeitura de São Paulo implantou o primeiro atendimento às mulheres vítimas de violência sexual no Hospital Municipal Artur Ribeiro de 9 Saboya, conhecido como “Hospital do Jabaquara”.

Detalhe: dez anos depois, em 1999, o Ministério da Saúde publicou o Manual de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual Contra Mulheres e Adolescentes no qual já previa que o aborto somente poderia ser realizado até a vigésima segunda semana de gestação. Essa norma foi republicada em 2012.

Diante desses fatos, é evidente que culpar o CFM e a Resolução pelos problemas do Aborto Legal no Brasil configura uma falácia e uma forma de lançar cortina de fumaça sobre um debate que tem como foco principal a proteção dos direitos da mulher e do nascituro.

Sobre o funcionamento da rede do Aborto Legal, que se ampliada, poderia reduzir o martírio de vítimas de estupro, os questionamentos devem ser direcionados aos 10 gestores do SUS, cujo silêncio tem contribuído pela dupla penalização da mulher violada.

Primeiro, a mulher é vítima do agressor, depois se torna refém da inoperância do Estado, por meios de seus representantes.

O SEGUNDO PONTO que merece esclarecimento diz respeito à crueldade implicada na assistolia fetal.

Vivemos num mundo onde a modernidade nos lança no terreno nebuloso da insensibilidade. Cada vez menos nos emocionamos com a dor alheia, salvo se vem na forma de postagens em redes sociais.

Por isso, é importante ressaltar que, sim, a assistolia fetal não é um método isento de dor e sofrimento para quem o recebe.

Numa gestação de 22 semanas, a mulher já carrega um ser humano formado, com 11 viabilidade de vida fora do útero. Ou seja, o sistema nervoso, o cérebro, já funcionam.

Podemos afirmar, sem dúvidas, que a aplicação do cloreto de potássio para causar a parada cardiorrespiratória desse ser, visando sua retirada cirúrgica posterior do útero, configura ato doloroso e desumano.

Não é por acaso que o Conselho Federal de Medicina Veterinária, em 2012, já classificava como método inaceitável o uso dessa substância – o cloreto de potássio – no processo de eutanásia de animais.

Será que há situações em que o sofrimento afeta uma vida pode ser considerado aceitável?

O TERCEIRO PONTO sobre o qual queremos falar com esse Plenário se refere ao suposto argumento de que o CFM não tem competência para estabelecer regras que tratem da atuação do médico, em caso de interrupção da gestação.

Essa é outra narrativa enviesada que confunde o entendimento desse tema.

Inicialmente, vale destacar que a Lei nº 3.268/1957 determina ao CFM a outorga de definir os critérios éticos e técnicos para o exercício da profissão médica no País, tendo como objetivo a eficácia e a segurança dos seus atos.

Não há excesso considerarmos que essa autarquia pública legisla sobre a atuação de seus membros, buscando inspiração nas leis e na ética para indicar como devem agir em determinadas situações, como no caso da assistolia fetal.

Mais uma vez reitero: a Resolução CFM nº 2.378/2024 não foi produzida para trazer prejuízo a mulher ou outros grupos e nem com o objetivo de impedir o funcionamento de estruturas que são de competência do Governo.

Sua gênese está na reflexão sobre aspectos éticos e bioéticos, a partir da análise de princípios como a beneficência e não maleficência.

Afinal, até que ponto a prática da assistolia fetal em gestações acima de 22 semanas traz benefícios e não causa malefícios?

Nesse campo, o direito à autonomia da mulher esbarra, sem dúvida, no dever constitucional imposto a todos nós de proteger a vida de qualquer um – mesmo um ser humano formado com 22 semanas.

Falamos aqui de consensos estabelecidos pela Constituição de 1988 e de diferentes acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário, como defensor reconhecido dos Direitos Humanos.

Assim, nos causa estranheza questionar a legitimidade do CFM de se manifestar sobre os critérios de assistolia fetal.

Ora, em 2012, o Supremo Tribunal Federal recorreu à nossa Casa para estabelecer os critérios do diagnóstico de anencefalia.

Foi com base no posicionamento técnico do CFM que o STF – por oito votos a favor e dois votos contra – decidiu que a interrupção da gravidez de feto anencéfalo não poderia ser criminalizada e incluída entre as possibilidades de aborto legal.

Assim, ajudamos a mulher a exercer o seu direito de autonomia nesses casos, evitando que tivesse que recorrer ao Judiciário para interromper uma gestação com essa característica.

Na época, o ato de colocar fim à gravidez nos casos em que o feto não tem o cérebro foi chamado por alguns ministros do STF de o “julgamento mais importante de toda a história” daquela Corte.

Agora, paira sobre nossas cabeças a dúvida: porque em 2012 a posição técnica do CFM foi considerada válida e, em 2024, ela é apontada como excessiva?

O QUARTO TEMA que trazemos para avaliação dos senhores e senhoras é a forma tortuosa como conceitos são utilizados de modo a favorecer determinados pontos de vista.

Durante esse debate, muito se fala sobre o aborto. No entanto, é relevante refletirmos sobre o limite temporal que separa essa prática da viabilidade de vida do feto fora do útero.

Estudos científicos afirmam que a partir da vigésima segunda semana de gestação já existe a chamada viabilidade do feto. Segundo esses trabalhos, a idade gestacional a partir da qual mais da metade dos recém-nascidos sobrevive modificou-se de 30-31 semanas na década de 1960 para 23-24 semanas na última década.

Os prematuros com idade gestacional maior ou igual a 25 semanas ou com peso ao nascer maior ou igual a 600 gramas apresentam maturidade suficiente para sobreviver.

Os recém-nascidos com idade gestacional menor que 23 semanas e peso ao nascer menor que 500g são extremamente imaturos, praticamente sem nenhuma chance de sobrevida livre de sequelas.

Para aqueles com idade gestacional entre 23 e 24 semanas e 6 dias, a sobrevida e os resultados são ainda incertos, constituindo a chamada “zona cinzenta”. Neste caso, a tomada de decisão deve ser baseada numa cuidadosa avaliação de dados pré-natal, idade gestacional, peso e condições clínicas.

Em todos esses casos falamos de prematuridade. São situações onde há viabilidade de vida e já não se trata de um feto, mas de um ser humano formado.

Evidentemente que menor o tempo de gestação mais será exigido do Estado a oferta de infraestrutura médica e hospitalar para dar suporte ao bebê, que precisará de cuidados intensivos para seu desenvolvimento.

Da mesma forma, cabe ao Estado oferecer à mulher condições de encaminhar a criança para adoção, caso seja sua decisão.

Diante desses cenários, como nos portar considerando-se a obrigação legal de defender e preservar a vida humana?

EXCELENTÍSSIMOS SENHORES E SENHORAS, me aproximo do fim de minha participação nesta sessão e não posso deixar de compartilhar com essa nobre audiência meus questionamentos sobre os desdobramentos que assistimos, a partir da edição da Resolução CFM nº 2.378/2024.

Como médico, marido, pai, avô. Como indivíduo implicado na vida de minha comunidade e na interação junto aos meus colegas de profissão, não posso esconder minha surpresa com a banalização da vida a que estamos sendo expostos na sociedade contemporânea de modo sistemático.

Aqui, abordamos o uso da assistolia fetal, no meu entendimento, um método cruel e desumano para cessar a vida de um ser humano formado com 22 semanas. No entanto, o noticiário não nos poupa de outras tantas situações de abuso, violência, crime e morte da manhã até a noite.

Me pergunto: o que houve em nossa caminhada como humanidade?

Qual o desvio que tomamos em nossa rota, tornando-nos insensíveis e indiferentes à necessidade suprema de proteger a dignidade e a vida?

Finalmente, encerro essa manifestação com o agradecimento público às quase 50 moções de apoio à Resolução do CFM sobre assistolia fetal enviadas por Câmaras de Vereadores, Assembleias Legislativas, Parlamentares Federais e entidades do movimento civil organizado. Cada uma dessas mensagens nos dá ânimo nessa caminhada.

Da mesma forma, deixo minha gratidão ao senador Eduardo Girão que abriu espaço para que, no Plenário do Senado Federal, o CFM tivesse a chance de se manifestar junto aos políticos e à sociedade, sem limites de tempo e com pleno direito de esclarecer questionamentos aos quais tem sido submetido.

SENHORAS E SENHORES, a vida, em todas as suas formas e fases, merece nosso mais profundo respeito e proteção.

A Humanidade vive tempos atribulados, desafiadores, mas a Medicina, como a ciência mais humana de todas, deve estar preparada para fazer face a essas provações com base na lei, na ciência e na ética.

Estejam certos de que enquanto houver amor ao próximo, haverá a defesa da integridade, da saúde e da vida pela Medicina e pelo CFM!”

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