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Quando um médico perde a própria vida para o suicídio, não é apenas um indivíduo que se vai. É um silenciamento coletivo – o silêncio de um estetoscópio que deixa de ouvir corações, mas que deveria ter sido ouvido no seu próprio sofrimento.
Estamos aqui não apenas para falar de estatísticas. Estamos aqui para lembrar que cada número representa um colega, um amigo, alguém que dedicou a vida a cuidar dos outros.
Embora muitos dos estudos clássicos sobre suicídio médico remontem a décadas, evidências recentes confirmam que a problemática permanece urgente e ampliada.

Os estudos mostram que médicos têm um risco 1,4 a 2,3 vezes maior de suicídio em relação à população geral.
Entre as médicas, esse risco pode ser ainda mais dramático, chegando a ser 2,7 vezes maior.

Internacionalmente, uma análise recente sugere que médicas enfrentam risco de suicídio 76% maior que a população feminina em geral, mesmo com variação entre estudos para médicos homens.

Nos Estados Unidos, estima-se que 300 a 400 médicos morram por suicídio a cada ano. Isso equivale a perder, todos os anos, uma turma inteira de formandos em Medicina.

Se fosse um avião de médicos caindo todos os anos, já teríamos declarado estado de calamidade na aviação. Mas como essas mortes são silenciosas, seguimos naturalizando.

No Brasil, ainda temos poucos dados sistematizados. Mas estudos com residentes mostram prevalência de ideação suicida entre 10 e 15%. É um número alarmante.

Em 2024, um estudo nacional com mais de 4 mil médicos brasileiros revelou que 8,8% relataram ter planos de suicídio e 3,2% já tentaram. A exaustão emocional diária e a frustração no trabalho apareceram como fortes fatores de risco, com risco de sete a oito vezes maiores em comparação a quem não relata tais sentimentos.

Ainda, verificou-se que entre médicos extremamente insatisfeitos, 38,3% relataram ter planejado ou tentado suicídio, enquanto entre os extremamente satisfeitos esse índice caiu para apenas 2,8%.

Esses dados reforçam que não podemos mais postergar: o suicídio entre médicos é uma realidade documentada com urgência crescente, e precisamos responder com estratégias que sejam não apenas reativas, mas também preventivas, contextualizadas e sustentáveis.
Por que isso acontece?
Existem fatores ocupacionais: burnout – que atinge até metade dos médicos em alguns levantamentos –, jornadas extenuantes, múltiplos vínculos, a exposição contínua à dor, à morte, e ainda a judicialização da prática médica.
Existem fatores pessoais: perfeccionismo, autoexigência, dificuldade de pedir ajuda, medo do estigma.
E existe um fator crítico: o acesso a meios letais. O mesmo conhecimento que salva vidas pode se transformar na arma silenciosa contra quem o carrega.
Quais são as barreiras ao cuidado?
Mesmo quando reconhecem o sofrimento, muitos médicos não buscam ajuda.
Um estudo mostrou que apenas 1 em cada 4 médicos com sintomas depressivos procura atendimento especializado.
Por quê?
Porque ainda existe um estigma institucional: medo de serem vistos como fracos, medo de repercussões na carreira.
Muitos médicos preferem sofrer em silêncio a correr o risco de serem julgados. E esse silêncio, tantas vezes, é fatal.
Mas há caminhos. E não precisamos começar do zero.
Nos Estados Unidos e no Canadá, existem os Physician Health Programs. São programas confidenciais, de longo prazo, que acompanham médicos em sofrimento, inclusive com uso problemático de substâncias. Mais de 70% dos médicos atendidos conseguem retornar à prática com segurança.
No Reino Unido, existe o Doctors’ Support Network, uma rede criada por médicos para médicos. É confidencial, independente do conselho profissional, baseada em apoio entre pares.
Na Austrália e na Nova Zelândia, existem linhas diretas 24 horas e programas de prevenção em universidades e hospitais.
Nos países nórdicos, clínicas específicas para médicos em sofrimento funcionam desde os anos 1990, financiadas pelo sistema de saúde.
E em 2022, a Organização Mundial da Saúde publicou um guia global para saúde mental de profissionais da saúde, reforçando três pilares: prevenção, proteção e promoção.
Essas evidências demonstram uma direção crescente: hospitais e instituições médicas estão criando programas internos de bem-estar e suporte, algumas vezes modelados institucionalmente — não apenas em resposta a crises, mas como parte da cultura organizacional.

No entanto, a maioria das intervenções bem estudadas ainda é individual ou de curto prazo, não necessariamente programas institucionais de longo prazo com monitoramento robusto.

Há uma grande lacuna metodológica : poucas intervenções organizacionais (reforma de carga de trabalho, mudanças estruturais) foram avaliadas em ensaios controlados ou comparativos.

Esses modelos nos mostram que é possível romper o silêncio. Não precisamos reinventar a roda. Precisamos adaptá-la.
E como estamos no Brasil?
No Brasil há poucos dados até agora que descrevam programas institucionais bem estabelecidos voltados especificamente a médicos (fora o contexto da pandemia).

Temos iniciativas, mas fragmentadas.
Campanhas da Associação Brasileira de Psiquiatria, como o Setembro Amarelo.
Programas de alguns Conselhos Regionais de Medicina.
Projetos de lei propondo assistência psiquiátrica obrigatória a estudantes e residentes.
Mas, no geral, ainda atuamos de forma reativa, em resposta a crises, e não de forma preventiva, contínua e estruturada.
Temos programas de excelência para salvar corações infartados… mas ainda engatinhamos em salvar os corações adoecidos dos próprios médicos.
O que podemos fazer?
No nível individual: reconhecer sinais de risco em colegas, estimular o autocuidado, quebrar o tabu de buscar ajuda. Garantir acesso fácil, imediato e confidencial a serviços de apoio.

Isso significa oferecer canais 24 horas, seja por telefone, WhatsApp ou telepsiquiatria, de forma que qualquer médico ou residente em sofrimento possa pedir ajuda sem medo.

Devemos implementar triagens rápidas com instrumentos validados, em momentos críticos da carreira, como no início da residência ou após eventos traumáticos.

Pequenos gestos fazem diferença: um cartão de bolso com sinais de alerta, contatos úteis e passos de encaminhamento pode salvar vidas.

Também é essencial criar grupos de apoio entre pares, onde médicos possam compartilhar experiências em um espaço seguro, inspirado em modelos como o Doctors’ Support Network do Reino Unido.

E não podemos esquecer da pósvenção: protocolos claros de apoio às equipes após um suicídio ou tentativa, para acolher o luto e evitar novos casos.
No nível institucional: precisamos enfrentar as condições de trabalho que adoecem. Isso inclui limitar a carga horária, evitar jornadas desumanas e plantões sem descanso adequado.

É preciso criar espaços semanais de escuta estruturada, mesmo que curtos, e garantir supervisão protegida para residentes, sem retaliações.

Chefes de serviço e preceptores devem ser treinados para reconhecer sinais de risco e encaminhar colegas com humanidade e respeito.
No nível político: precisamos de leis que protejam a confidencialidade, financiamento público e privado para programas, e pesquisa sistemática.

É fundamental estruturar programas permanentes de saúde do médico, inspirados nos Physician Health Programs de outros países.

Esses programas devem garantir confidencialidade, oferecer avaliação multiprofissional, acompanhamento de longo prazo e protocolos de retorno seguro ao trabalho.

Precisamos de políticas claras de não punição automática: o médico que procura ajuda não pode ser penalizado em processos de licença ou credenciamento.

Além disso, devemos integrar esses serviços à Rede de Atenção Psicossocial do SUS, criando fluxos rápidos de encaminhamento.

Para sustentar tudo isso, é necessário financiamento compartilhado entre o sistema público, os Conselhos de Medicina e as sociedades médicas.

E, por fim, precisamos investir em campanhas permanentes contra o estigma, lembrando sempre que cuidar de si não é sinal de fraqueza, mas de responsabilidade.

E como saber se estamos avançando? Com indicadores claros: número de atendimentos realizados, tempo de resposta ao chamado de um colega em crise, prevalência de sintomas rastreados, número de afastamentos e retornos ao trabalho planejados, além de pesquisas semestrais sobre percepção de estigma e satisfação com o suporte recebido.

Se queremos médicos capazes de cuidar, precisamos primeiro garantir que eles possam viver.

O suicídio entre médicos não é apenas uma tragédia individual. É uma falha coletiva, ética e institucional.
Colegas, não podemos mais aceitar que o suicídio entre médicos seja tratado como um destino silencioso, inevitável ou invisível. Cada vida perdida é um alerta de que precisamos agir juntos, de forma urgente e solidária.

Conclamo cada um de vocês: que sejamos vigilantes não apenas dos sinais vitais dos nossos pacientes, mas também dos sinais de sofrimento dos nossos colegas. Que tenhamos a coragem de perguntar, de ouvir e de oferecer ajuda. Que possamos construir uma cultura em que pedir socorro não seja motivo de vergonha, mas um ato de maturidade e responsabilidade profissional.

É hora de unirmos nossas forças – Conselhos de Medicina, sociedades científicas, hospitais, universidades e cada médico aqui presente – para transformar a realidade da saúde mental entre nós. A nossa missão não se limita a salvar vidas de pacientes; ela inclui proteger a vida de quem cuida.

Sejamos a geração que rompeu o silêncio, que enfrentou o estigma e que não permitiu que mais estetoscópios se calassem antes da hora.

Porque, colegas, se queremos médicos capazes de curar, precisamos primeiro garantir que eles possam viver.
Um médico que morre por suicídio não é apenas uma perda para sua família. É a derrota de um sistema que não conseguiu ouvir o silêncio no estetoscópio.
Que possamos transformar esse silêncio em voz.
A solidão em rede de apoio.
O sofrimento em cuidado.
Este é o nosso desafio.
E, mais do que isso, este é o nosso dever.

 

✍️ Dr. José Albuquerque de Figueiredo Neto
Médico cardiologista e presidente do CRM-MA

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